"Por dentro do livro" é uma postagem regular em que eu discorro a respeito de algum tema ou passagem que me chamou a atenção em algum livro. Pode conter alguns spoilers, portanto se não leu o livro e não quer saber alguns detalhes sobre o enredo recomendo voltar quando tiver lido.
O jardim secreto é um clássico que já foi adaptado para os cinemas em 1949, 1987 e 1993. Quando eu era criança, eu assisti a versão de 93 e lembro de ter ficado encantado com aquela história das crianças que descobrem um jardim aparentemente morto e, com muita dedicação, voltam a recuperá-lo. Mas eu só tive a oportunidade de ler o livro quase 16 anos depois; a primeira vez que eu assistir ao filme foi em 1996.
Uma das passagens que mais me chamou a atenção é aquela em que Mary Lennox entra pela primeira vez no jardim, há dez anos trancado, e encontra os "pontinhos verdes". A autora usou uma sutileza incrível para descrever um processo complicadíssimo de se fazer.
"Mary não entendia nada de jardinagem, mas o capim estava tão cheio em alguns dos lugares onde os pontinhos verdes tentavam abrir caminho que ela achou que eles pareciam não ter espaço para crescer. Olhou em volta e encontrou um pedaço de pau com ponta afiada. Em seguida, ajoelhou no chão e começou a cavar buracos na terra e a arrancar o capim e as ervas daninhas, até conseguir deixar um bom espaço livre ao redor dos pontinhos verdes.
'Agora eles parecem ter espaço para respirar', disse, ao terminar de limpar a terra em volta dos primeiros pontinhos verdes. 'Vou fazer isso em volta de todos os que eu conseguir encontrar. Se não der tempo para fazer tudo hoje, eu continuo amanhã."
O jardim secreto, Frances Hodgson Burnett, Peguin-Companhia, página 107.
Para quem não sabe, Mary Lennox era uma garotinha intragável. Muito rabugenta e mimada, ela era acostumada a ter tudo o que queria e a gente fazendo tudo por ela, inclusive vestir suas próprias roupas. Mas depois que uma tragédia se abate sobre sua família, tragédia essa que não a faz derramar uma lágrima sequer, ela é levada para morar com um tio de quem ela nunca ouviu falar. Uma série de acontecimentos e o ar do campo faz com que ela passe por pequenas mas significativas modificações. Ela, então, começa a se tornar mais agradável e saudável.
Quando ela começa a separar o mato dos pontinhos verdes para eles respirarem, ela não está apenas fazendo jardinagem. Ela está dando espaço para que coisas boas aconteçam. Ela sabe que não tem como recuperar o que foi negligenciado durante tantos anos em um período curto de tempo. É preciso afastar o que é nocivo do que é benigno para a beleza fluir e transbordar aos olhos.
Neste sentido, o jardim não é apenas o mundo em que as crianças brincam, ele não representa somente a infância. Ele é uma forma de buscar gradativamente a luz nas sombras que teimam em nos assombrar. Vivemos num mundo acelerado, tão diferente do mundo de dez ou quinze anos atrás. Estamos sempre ansiosos e com pressa para que as coisas aconteçam e acabamos nos frustrando e deixando de aproveitar o momento. Ficamos deprimidos e solitários e o que era para ser um dia de céu azul e uma explosão de luz solar, com campos de grama verde cheio de árvores frutíferas e belas flores, vai sendo consumido pela escuridão de nossas frustrações constantes.
Não importa quão sombria esteja nossa situação. Em algum lugar, em meio a galhos secos e cinzentos, haverá um pontinho verde lutando para respirar. É claro que é duro manter longe os sentimentos ruins quando parece que eles são tudo o que temos. Somos, na maioria das vezes, orgulhosos demais para baixar a guarda e aceitar a ajuda das outras pessoas.
Como diz a P!nk na música Bridge of Light, devemos respirar fundo e criar pontes de luz nos momentos em que estamos confusos e tudo parece dar errado. E que não devemos esquecer que o amor quer vir.
E é o que Frances mostra neste livro. Com amor e carinho e uma boa dose de paciência, dando espaço e cuidando todo dia do que amamos, o que não anda pode voltar a andar, quem não tem esperança na vida pode voltar a sorrir e o que está morrendo pode encontrar novas forças para se reerguer.